terça-feira, 14 de novembro de 2017

Balanço

Meus irmãos segurem firme que o mundo vai balançar. Todos vão ser chacoalhados, muitos cairão ao teu lado, você também vai cair ao lado de alguém. Vamos precisar dar as mãos depois de olhar nos olhos e nas almas que tudo traz. E não damos as mãos, mas as emprestamos como ferramentas para o funcionamento da Terra. Apoca. Boa época de se iluminar, vendo tudo apagado. Mas sofrível. Preparar-se para o teatro trágico dessas ilusões e ao demolir do palco, poder criar novas formas. Deixemos morrer, mas nos preparemos, porque o balanço vai romper a corrente carcomida. E mesmo assim cantar esperança.

Ritmo

As piores doenças da humanidade vem de um perigoso apego, uma carência belicosa, a falta de compreensão dos fluxos e ausência de genuína gratidão pelas etapas na vida. E muita cobrança. Doença é cobrança, cobra que dá bote pra mostrar como se dança. O adoecimento da alma está em não comportar-se em si mesmo e depositar suas contas na vida dos outros. A missão é fazer caber-se e se possível fazer sobrar. Saber fazer a mala. Saber fazer. Saber. Há muito o que dar para poder receber. Desapegar de momentos e padrões e reconhecer apenas o que está ao seu alcance no instante: passar pela alameda do laranjal carregado de frutos, flores, cores e olores e chorar porque se quer mamão não se configura como uma das atitudes mais inteligentes. O guerreiro não é o que "se vira" e dá tudo de si, mas é aquele que se autosustenta. Autodidatismo do mundo é o caminho do curado. A vaca só amamenta depois de aprender a comer capim. Devemos controlar a mente e as ervas daninhas para fazer o bom leite. Beber mais água. Beber menos mágoa. Doenças que acometem a alma só fazem apontar com rancor e o dedo julga como uma criança abandonada pelo Tempo. Não conseguir enxergar o passar é falta de lavar a alma no rio. Eterna vitimização dos filhos de Cronos esse pensar-se Sol dentro de um sistema em que todos são sóis livres e potestades brilhantes. Todos sós e juntos. Querer colo em desespero é imaturidade pois é a preguiça de se lembrar que se tem pernas. Todos no mesmo baile: aprenda a dançar, tocar e ouvir o que pulsa. Não adianta fincar a agulha no disco do passado. Quebraram-se muitas vitrolas. Ouvir o ritmo interno do Eterno. Dar sempre corda.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

sou

Sou uma farsa e uma verdade. Sou um eleito e sou um golpe. No estômago, no coração. Sou inteiramente metade de algo de nada. E tudo sei dentro de minha ignorância. Sou santo e demônio brincando no mundo de corda bamba. Porque sou sem ser e estou talvez nem sabendo o que é isso. Nascemos de um pacto e morremos buscando ainda o que não encontramos: só mais um minutinho, por favor! Sou um país mas sou despatriado porque os territórios não se fazem em mim, nem em ninguém que faz raiz nesse solo seco que bebe minha água. Dicotômico e único, buscando espaços no espaço que me esmaga de tão infinito.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Alma



Alma de roçado, um casarão em que a madeira estala, uma música triste cantada ao redor da fogueira, a água fria que lava o rosto antes do sol que se anuncia. É feita de couves e macaxeiras, de cabelinhos encaracolados do chuchuzal que dá a sombra, de chuva fina amaciando o solo, da umidade do banco de pedra. Traz um cheiro de tecido guardado, alfazema e banha de porco. Alma de fogão à lenha, panela cheia de canjiquinha, tacho quente do doce de fruta, figo em calda e mamão bem escolhido. Alma de poltrona, de ida ao cemitério, de parto de um potro, lembrança de uma tia velha, de lavar lençóis e de quarar, de cantarolices de igreja, de fado trazido de longe pelo dono da mercearia, de cantiga revolvida dos tempos idos. Se esconde de noite depois de deitar os filhos. Alma de pio de pássaro, que ora, que sente o peso de tanta subida, por montanhas, alma de cabra, alma de leite, alma adoecida. Alma de bom dia em vilarejo, carinho na vaca, reclamação da lama, troca da saca de farinha pelo café colhido, mexerica e manga na mão. Alma de calçada frente à casa, triste alegria, de sorrir com o dedo de prosa e com festejos de violões. Alma que ara a terra sonhando com o passeio de tílburi, que dá o resto ao cão, que olha para as crianças não querendo olhar relógios. Alma que não dança bem pois se envergonha de querer dançar, bolo de fubá como tesouro dos dias, papa de milho que dá trabalho e ninguém ao lamber dos pratos elogia. Alma de capim entre os dentes, de chá de carqueja, poejo e pejo. Alma de galinha fedida no galinheiro, de fritar bolinhos de queijo curado para a quermesse, de olhar o balão subir como quem vê Deus acenando, de ida ao rio molhar as pernas, de sexo tranquilo em cama de mola premeditando mais um filho. Alma de costura e linha, de hálito cansado, um olho mole de amor e o outro rijo. Alma de clara em neve, roncar de cadeira de balanço, de cuidar da velha mãe, de varrer os farelos de pão torrado, do brilho excelso do chorar da lamparina. Alma de segredo, de grito interrompido, de cordialidade, de dever comprido. Alma de ciranda buscando dar mãos a todos, estar visível, não ser risível, de ser razoável, de ser o bicho. Alma de luto, sem luta, de labuta, cheia de riso e mão tapando a boca, sons comedidos pelos olhares na sala, alma de lata de biscoito, alma de broche, de colar guardado na caixa de ferro comido. Alma de três, de suor, pires lavado, de boneca cerzida pra mais nova brincar. Alma de antes, de mofo e silêncio, respirando pela boca o ar de esporos antigos. Alma de flores no vaso de vidro, de leque rendado a espantar mosquito como o rabo do boi que abana em chicote. Alma de azevinho, de óleo de essência, de óleo de rícino, de dobradiça em ferrugem, de linho comprado novo pro vestido da fotografia. Alma de janela, de cortina pro vento, de tique-taque ansioso reinando no ar vespertino. Alma de varanda, de bananas maturando, de água de poço, de criança em febre alta e doutor sem esperanças. Alma de lusco-fusco, da hora da Ave-Maria, de ângelus, terço, creio-em-deus-pai, pé no chão conectando, de minhoca cavucando, de visita dominical ao parente, de abraço sem jeito, de histórias contadas pra relembrar quem se é, quem nunca foi, quem sempre será.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

o outro

O outro sente saudades do outro, sente desejo de comer um churros, carrega sacolas de uma vida que lhe pesa, suspira pelos cantos e limpa o pó das imagens do seu altar de fora, solta farpas do atrito entre as madeiras tremendo, se enreda no passado olhando pra uma lua que já sempre foi aquela. Joga fagulhas na floresta seca pra dizer sem dizer as sementes que quer ver nascer. Fica cabisbaixo como lesma no cenário triste, reclama das coisas que estão a seu alcance, quer ir pra longe, se renovar, criar asas novas, a partir de desejos velhos. O ninho não basta pro bicho que não consegue se conter. Brinca de esconde-esconde e acha que é engraçado buscar as sombras pra não ser visto e depois gritar pra dar o bote e ganhar o jogo. É preciso ainda andar muito pra se ver voando de verdade. A cada encanto que se desdobra, o outro se dobra, como dobradiça de porta deixando o que quer entrar. A troca se dá na filigrana e nos mistérios que ninguém sabe. Não corta a corda poída que amarra o barco por teimosia. Fica baloiçando querendo morrer. Tudo é poço se não tem controle do balde. O outro quer sair correndo pelo mundo, quer dizer mas não quer matar a mim. A mente do outro é do outro, por isso nem me comovo, já aprendi que nada faço: que seja. O outro deixa o mundo que deseja pro dia de amanhã, mas a sua mente vai na rede de arrastão e não sabemos em que onda nova tudo morrerá.

segunda-feira, 6 de março de 2017

A vida realmente não se apresenta bastante nítida para o marinheiro que não utiliza as suas ferramentas de serviço. O marinheiro que navega equipado sabe que ele é o mar. Para atravessar a calmaria ou as intempéries, ele deve conectar-se com as energias de onde se insere, para atravessar o seu próprio espírito e chegar à sua meta.

Aquele que não conhece o mar e sai em aventuras, pode ter sorte ou arrastar-se na primeira onda, à deriva solto sem lei, sem decisão sobre o caminho a ser tomado. Nem sempre o marinheiro tem sorte - tanto o equipado e instruído quanto o desorientado. A maior bússola que temos será a mente ou o coração? Muitos colocam até o estômago como a rosa dos ventos. Porém, guiar-se é desafio sem tanta rigidez de normas, pois é adequação e adaptação às energias inconstantes que se apresentam. Aquele que segue à risca a cartilha cartográfica pode ficar tão envolvido em letras, legendas, mapas, manuais e manuseios técnicos que pode acabar não ouvindo o tempo certo que só o espírito vivo integrado ao corpo em ação pode realizar. Os comandantes de longa data que imperam sobre o mar sabem que o mar é dono deles. O respeito às ondas e aos sinais do tempo seria uma das ferramentas certeiras para conectar-se ao momento presente do balanço. A ferramenta de um marinheiro pode ser a bússola ou o timão, mas o canto e o assovio são estados de serviço que podem levar o marinheiro em condução firme e constante para a chegada ao porto.

Todos temos as nossas ferramentas e todos esquecemos ou nos lembramos delas. Diante do mar necessita-se olhar. Para o grande mar e para dentro de si. Ao mesmo tempo. É esse mistério que devemos navegar.

sábado, 12 de novembro de 2016

Ser

O ser se esparrama no corpo.

Experimente fechar os olhos e não associar a fala do outro à sua imagem. Verá somente a ideia do outro expressa no tempo. Ainda assim, uma forma, vibração sonora de ondas que partem da matéria. O corpo, morada da energia do ser, vibra mais denso e concentrado que as moléculas do som emitidas pelo movimento das suas cordas vocais em orquestra. Mas a ideia é energia ainda mais fina. Mora no invisível, treme miudinha. Mais fina que farinha, mais forte que o aço. As ideias, sutis na grande teia, encontram morada na carne, para serem devoradas e depois vibrarem no mundo a partir da energia de seus veículos terrestres - todos nós, duros de forma.

A ideia, adensando forma em nossos cérebros-motores, é burilada, construída e deformada de acordo com a maquinaria competente ou não de cada um. Nesse processo, vem ao mundo da ação em vibração portando a energia do que a cria, se espalha no mundo.

A ideia se esparrama no mundo.

A ideia necessita de corpos para se espalhar no mundo, de reprodução em massa do seu programa de aprimoramento. Ou a ideia é tão pura, que só necessita de um para torná-la mundo. A ideia claudicante, atropelada, às vezes não morre – agarra no mundo.

E todos seres, veículos no mundo, saímos vibrando densos entre campos de energia. Cada metro quadrado um redemoinho de pensamentos e ideias rodopiando, interferindo como rádios-piratas e rádios-amadores as antenas de nossa vida. Todos são atropelados, afetados diretamente com a pulsação da mistura do mundo. Por isso, escolher onde transitar e como transitar. Sabendo fechar e abrir persianas. Brechas apenas para o fino é a meta. Por vidas afinamos essa antena fio-Terra, equipando com novas tecnologias e esquemas de segurança a nossa parabólica ambulante constelação mental, nossa fabril-febril esteira, afinando seus recursos, maquinários e expedientes para promover o seu mais fino produto, o som harmônico da vibração altíssima de um vasto ser.

O mundo se esparrama no ser.

O mundo é vasto, o ser será. Vamos alargando os espaços de nós, buscando sermos livres a cada expansão de consciência. Buscar consciência é saber ler as vibrações: as repelidas e as amalgamadas. Se escolhe. Sempre. Porém, saber a melhor opção é a consciência como alimento do que se é. Estamos não evoluindo, mas nos reprogramando para chegar ao canto do divino. As ideias talvez caiam aqui vindas do plano superior e esperem de nossos aparelhos os ajustes de refinamento necessários para trazer novos mundos para nós, em reprogramação enérg(ET)ica do planeta. Para isso, nossa mente una, coletiva, deve conectar-se sem faíscas e ruídos. A opressão mundial, a violência, as ditaduras, advêm de nossas mentes fazendo má musica. Ideias devem ser orquestradas pelo maestro criador dos instrumentos, que firma a batuta em cada processo de aperfeiçoamento de nossas redes. O ser joga no mundo, a mistura do mundo devolve no ser. Deve haver alguma forma de filtração do mundo, para a extração do puro, para a transmutação do sujo, para a criação de paraísos. De mundos mais justos, harmoniosos e fortalecidos que se esparramem sem ruídos nos mundos vastos a ser. De mundos invadindo nossos pastos, sem ondas de baque, cantando o mantra do om, vibrando parado no infinito, nossa eterna ressurreição.




Cura do Sapo - 2016
lapiseira e arte digital